ISSN 1807-1783                atualizado em 04 de fevereiro de 2009   


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O método arqueológico de análise discursiva: o percurso metodológico de Michel Foucault

por Sérgio Campos Gonçalves

Sobre o autor *

Introdução

Este texto representa um estudo panorâmico sobre a análise discursiva que Michel Foucault prescreveu através da construção de seu método arqueológico. O objetivo é refletir sobre a aplicabilidade da “arqueologia do discurso” como recurso metodológico.

A estratégia de trabalho consistiu em duas etapas: a primeira trata de situar a análise arqueológica do discurso na “trajetória filosófica” de Michel Foucault, que tem por referência o trabalho de Dreyfus e Rabinow (1995)[1]; a segunda observa o percurso metodológico-arqueológico pensado por Foucault para a análise do discurso.[2]

Ainda que esteja concentrado no livro “A Arqueologia do Saber[3], é fundamental situarmos o trabalho de Foucault sobre o método arqueológico em perspectiva, de acordo com o desenvolvimento de sua obra. Algumas importantes idéias que são pré-requisitos à compreensão do nosso objetivo estão contidas notadamente nos seguintes textos: “O Nascimento da Clínica”[4], “As Palavras e as Coisas”[5], e “A Ordem do Discurso”[6].  

“Arqueologia” em perspectiva pós-facto

O livro “Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica”, escrito por H. Dreyfus e P. Rabinow - e com participação do próprio Foucault, aponta um sentido pós-facto da obra foucaultiana. Conforme os autores observam, partindo da interpretação kantiana, Foucault entende que o final do século XVIII representa um ponto de inflexão para o conhecimento humano (ocidental), dado que, a partir de então, os seres humanos passaram a ser interpretados como sujeitos e objetos do seu próprio conhecimento, concomitantemente.  Dreyfus e Rabinow explicam que  

Kant introduziu a idéia de que o homem é o único ser totalmente envolvido pela natureza (seu corpo), pela sociedade (relações históricas, políticas e econômicas) e pela língua (sua língua materna), e ao mesmo tempo, encontra uma sólida base para todos estes envolvimentos em sua atividade organizadora e doadora de sentido.[7] 

Nessa esteira, entre a década de 60 e o início dos anos 80 do século passado, ocorreram dois tipos de reações metodológicas à fenomenologia, a abordagem hermenêutica e a estruturalista. Ambas procuraram superar a divisão kantiana entre sujeito e objeto - posto que sejam herdeiras dela.

Embora o fato das duas perspectivas metodológicas abolirem a noção de um sujeito transcendental doador de sentido, elas são diferentes. Além de procurar eliminar tanto o sentido quando o próprio sujeito, a visada estruturalista esforça-se por esquadrinhar “cientificamente” as leis objetivas que governariam todas as atividades humanas; desse modo, investiga a partir da definição da decomposição dos elementos básicos, regras ou leis que, em conjunto, seriam responsáveis pelos empreendimentos humanos. Dreyfus e Rabinow observam que: 

Existem dois tipos de estruturalismo: estruturalismo atomista, onde [sic] os elementos são completamente especificados, separadamente do papel que representam em algum conjunto mais abrangente [...]; e o estruturalismo holista ou diacrônico, onde [sic] o que é considerado como um elemento possível é definido separadamente do sistema de elementos, mas o que conta como um elemento real é uma função de todo o sistema de diferenças do qual o elemento dado é uma parte.[8] 

Para Dreyfus e Rabinow, o método arqueológico foucaultiano mais se assemelharia ao estruturalismo holista – até porque Foucault explicitamente distingue seu método do estruturalismo atomista. A fenomenologia transcendental, argumentam, “como definida e praticada por Edmund Husserl, é diametralmente oposta ao estruturalismo”, pois ela aceitaria a idéia de que o homem é, ao mesmo tempo, totalmente objeto e sujeito.

Além disso, a fenomenologia transcendental investiga, nas palavras de Dreyfus e Rabinow, “a atividade doadora de sentido do ego transcendental, que dá sentido a todos os objetos incluindo seu próprio corpo, sua própria personalidade empírica, além da cultura e da história, que ‘estabelece’ como condicionando seu ser”. Através de Heidegger e de Merleau-Ponty, Foucault teria sido influenciado pela fenomenologia existencialista, que se trata do contra-movimento da fenomenologia transcendental.[9]

Do outro lado do estruturalismo estaria a abordagem hermenêutica. Apesar de abdicar da tentativa fenomenológica de compreender o humano como sujeito doador de sentido, a abordagem hermenêutica deseja manter o sentido, o qual seria localizável nos textos literários e nas práticas sociais do homem. Ou seja, nessa perspectiva, as ações humanas conteriam significados em estado latente, os quais estariam ocultos aos agentes de suas práticas cotidianas. Essa verdade profunda poderia ser descoberta através da leitura interpretativa, tal qual prescreve o método hermenêutico. [10]

Foucault não estaria interessado em recuperar essa verdade perdida pela auto-interpretação do homem, pois ele não crê que o problema do equívoco da auto-interpretação habitual e do auto-entendimento cotidiano tenha a raiz em uma verdade profunda.

Ao acompanhar as estratégias metodológicas que Foucault desenvolveu para estudar o humano, Dreyfus e Rabinow defendem que ele constantemente buscou ir além das alternativas que o estruturalismo e a hermenêutica ofereciam. Assim, ao afastar-se da análise estruturalista que desconsiderava totalmente a noção de sentido, Foucault substituiu-a “por um modelo formal de comportamento humano que apresenta transformações, governadas por regras, de elementos sem significado[11]. Ele também “tentou evitar o projeto fenomenológico de ligar todo o sentido à atividade de dar sentido de um sujeito autônomo e transcendental”, da mesma forma que buscou desviar da “tentativa do comentário de ter o sentido implícito das práticas sociais, assim como o desvelar feito pela hermenêutica de um sentido diferente e mais profundo do qual os atores sociais têm uma vaga consciência”.[12]

Em seus primeiros trabalhos, como a “História da Loucura na Idade Clássica”[13] e “O Nascimento da Clínica”, Foucault volta-se para o estudo analítico de sistemas de instituições e práticas discursivos historicamente localizados[14]. Nessas duas obras, Foucault distingue os atos de fala da vida cotidiana das práticas discursivas, e, especialmente, interessa-se pelos “atos de fala sérios”, sobretudo do discurso das disciplinas que constituíram as ciências humanas. Foucault ilustra essa idéia quando nota que há uma mudança de percepção ligada à nova forma de construção do conhecimento:  

O olho torna-se o depositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só recebe à medida que lhe deu à luz; abrindo-se, abre a verdade de uma primeira abertura: flexão que marca, a partir do mundo da clareza clássica, a passagem do “Iluminismo” para o século XIX. [15]

O olhar não é mais redutor, mas fundador do indivíduo em sua qualidade irredutível. E, assim, torna-se possível organizar em torno dele uma linguagem racional. O objeto do discurso também pode ser um sujeito, sem que as figuras da objetividade sejam por isso alteradas. Foi esta organização formal e em profundidade, mais que o abandono das teorias e dos velhos sistemas, que criou a possibilidade de uma experiência clínica: ela levantou a velha proibição aristotélica; poder-se-á, finalmente, pronunciar sobre o indivíduo um discurso de estrutura científica. [16]

[…] são as formas de visibilidade que mudaram; o novo espírito médico […] nada mais é do que uma reorganização epistemológica da doença, em que os limites do visível e do invisível seguem novo plano; o abismo abaixo do mal e que era o próprio mal acaba de surgir na luz da linguagem […]. [17]

A formação da medicina clínica é apenas uma das mais visíveis testemunhas destas mudanças nas disposições fundamentais do saber [...]. [18]

Posteriormente, Foucault afirma que as ciências humanas podem ser observadas como sistemas autônomos de discurso, e que as instituições sociais exercem influência sobre as práticas discursivas[19]. Para isso, recomenda investigar os discursos das ciências humanas arqueologicamente, ou seja, sem envolver-se no debate se aquilo que afirmam é ou não verdade, ou se suas proposições são plausíveis. Ao invés disso, ele afirma que é preferível tratar o que é dito pelas ciências humanas como um “discurso-objeto”. Tratar-se, desse modo, de uma teoria sobre o discurso: “ortogonal a todas as disciplinas, com seus conceitos aceitos, sujeitos legitimados, objetos inquestionados e estratégias preferidas que produzem afirmativas justificadas de verdade[20]. Foucault observa que:     

Essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também – em suma, no discurso verdadeiro. [21] 

Há problemas com o projeto da Arqueologia. Conforme argumentam Dreyfus e Rabinow, “o poder causal atribuído às regras que governam os sistemas discursivos é ininteligível e torna incompreensível o tipo de influência que as instituições sociais têm”; esta influência sempre figurou entre as preocupações centrais de Foucault. Além disso, “na medida em que ele considera a arqueologia um fim em si mesmo, ele exclui a possibilidade de apresentar suas análises críticas em relação às suas preocupações sociais[22]. O método arqueológico, destarte, revelou-se insuficiente para dar conta da série de problemas e questões que diziam respeito às preocupações de Foucault. Como resultado, ele passou a pensar uma renovação de seus instrumentos intelectuais.  

Depois da Arqueologia, ele [Foucault] desvia bruscamente da tentativa de desenvolver uma teoria do discurso, e usa a genealogia de Nietzsche como ponto de partida para o desenvolvimento de um método que lhe permitiria tematizar a relação entre verdade, teoria, e valores e as instituições e práticas sociais nas quais eles emergem. [23] 

Entretanto, Foucault não rejeita o método arqueológico. Ele apenas afasta-o da pretensão de elaborar uma teoria absoluta sobre as regras que governariam os sistemas das práticas discursivas. Uma importante dimensão do pensamento de Foucault é a reflexão sobre como a representação, o discurso e o conhecimento estão envolvidos com práticas sociais e o poder, conforme especifica Balocco, ou como estão ligados “à forma como determinadas pessoas têm acesso diferencial a certos discursos ou têm mais autoridade para falar sobre certos assuntos, ou para construir determinadas representações, do que outras[24]. Com efeito, como instrumento metodológico, a arqueologia foucaultiana conserva sua utilidade de isolar os discursos-objetos, além de ser importante recurso para “distanciar e desfamiliarizar” os discursos sérios das ciências humanas.

O percurso das reflexões de Foucault não se encerra com a arqueologia das práticas discursivas. Bem pelo contrário, ela é ponto de partida para outra parte importante de sua obra: aquela que trata de questões referentes ao poder e à auto-subjetivação. Avançar sobre esses tópicos, contudo, extrapolaria o objetivo proposto nestas linhas.

No entanto, vale observar sinteticamente que, para Dreyfus e Rabinow, há três momentos distinguíveis na obra foucaultiana: na primeira fase seria possível observar o predomínio da linguagem, na qual seria perceptível uma tentativa de superação das disparidades entre estruturalismo e a hermenêutica; na segunda, suas reflexões sobre o poder redundariam em sua contribuição de enfatizar o corpo “como o lugar em que as minuciosas e localizadas práticas sociais estão ligadas com as macroorganizações de poder”; por último, a temática da consciência de sentido do sujeito em diferentes épocas (auto-subjetivação) representa o ponto central das preocupações de Foucault.[25]

Para os autores da exegese de Foucault, seu trabalho o situaria além do estruturalismo e, notadamente, da hermenêutica. Pois, apesar de conservar “a técnica estrutural de enfocar o discurso para se libertar de considerar os discursos e as práticas desta sociedade como simplesmente expressando a maneira como as coisas são”, entretanto, Foucault teria se distanciado do estruturalismo ao abandonar o projeto metodológico da arqueologia e, principalmente, por situar o projeto estruturalista historicamente – este representaria, para Foucault, uma “tecnologia disciplinar”, visto que faria parte de um contexto em que são crescentes “as práticas isoladoras ordenadoras e sistematizadoras”. Foucault entende que  

a disciplina é um Princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras. Tem-se o hábito de ver na fecundidade de uma autor, na multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, como que recursos infinitos para a criação dos discursos. Pode ser, mas não deixam de ser Princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu papel positivo e multiplicador, se não se levar em consideração sua função restritiva e coercitiva.[26] 

Teoria da prática discursiva 

O método de análise do processo das ciências do homem e sua teoria do discurso, como observado, foram apresentados por Foucault em “A Arqueologia do Saber”. A grande função desse método é tentar compreender as condições históricas e sociais que possibilitaram a irrupção de acontecimentos discursivos.

Em suas próprias palavras, Foucault manifesta que “gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva[27]. Para isso, talvez buscando uma perspectiva entre os níveis da estrutura e o do acontecimento, Foucault parte da análise das relações que se estabeleceram do menor e mais simples grau para o mais amplo e complexo, isto é, ele projeta um ciclo esquemático entre o enunciado (partícula mínima) e a formação discursiva (complexo):

Sendo o enunciado um ato elocutório regrado e com pretensão à verdade[28], o discurso refere-se ao conjunto de enunciados que obedecem a regras comuns de funcionamento; ou seja, discurso seria “um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva[29].

Dado que, para Foucault, o discurso é uma dispersão de elementos não conectados a priori, caberia à análise do discurso observar tal dispersão e buscar as regras de formação que regeriam a formação dos discursos. Assim sendo, configura-se uma formação discursiva se for possível identificar na dispersão discursiva regularidades entre os objetos, os conceitos e as escolhas temáticas. Em outras palavras, as regras determinantes para uma formação discursiva apresentam-se como um sistema de relações entre objetos, tipos de enunciados, conceitos e estratégias. Dessa maneira, todos esses elementos em conjunto possibilitariam a passagem da dispersão para a regularidade.

O objeto do arqueólogo é, portanto, o discurso. Mas não qualquer um. Dreyfus e Rabinow explicam que Foucault está interessado nos atos discursivos que se voltam para a constituição de um campo autônomo, visto que “tais atos discursivos ganham sua autonomia depois de serem aprovados numa espécie de teste institucional, como regras de argumento dialético, interrogatório inquisitório, ou confirmação empírica[30]. Logo, para Foucault: 

A análise do campo discursivo [...] trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. [31] 

De acordo com Araújo, em Foucault, “o sujeito do discurso não é a pessoa que realiza um ato de fala [...], o sujeito é aquele que pode usar determinado ato enunciativo por seu treinamento, pelo seu posto institucional ou competência técnica”.[32]

Além disso, há no discurso um suporte histórico, institucional, uma espécie de materialidade que proíbe ou permite sua realização[33]. Daí Foucault definir seu conceito de prática discursiva como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa[34]. Dessa forma, os atos de fala – elocutórios e enunciativos – inscrevem-se no interior de formações discursivas e em função de determinados regimes de verdade. Isto é, o discurso obedece a um conjunto de regras que são dadas historicamente e que reafirmam verdades de um tempo, pois participam das relações históricas de saber e poder.[35]

Ademais, em acordo com sua teoria do discurso, Foucault ensina que o pesquisador não deve investigar o que supostamente estaria por trás dos documentos e dos textos, tampouco deveria buscar resgatar aquilo que, diferente do que se tenha dito, supostamente se queria dizer em outra época ou cultura; a recomendação de Foucault é que o pesquisador (“arqueólogo”) descreva as condições de existência do discurso, do enunciado ou do conjunto de enunciados de determinada época ou cultura.[36]

Para a análise das formações discursivas, Foucault observa que o arqueólogo deve, em primeiro lugar, selecionar os atos discursivos sérios de um determinado período, para, em segundo lugar, sistematizá-los e descrevê-los. No entanto, essa metodologia apenas seria possível se instrumentalizada por alguns “utensílios conceituais que o arqueólogo usará para catalogar esse novo domínio[37]. Desse modo, Foucault introduz quatro categorias descritivas para a análise das formações discursivas: os objetos, os sujeitos, os conceitos e as estratégias. Em conjunto, e dentro do processo metodológico foucaultiano de análise dos sistemas que instauram o enunciado como acontecimento (práticas discursivas), as quatro categorias descritivas representam etapas que podem ser discriminadas no processo entre o enunciado e a formação discursiva: 

 

 As quatro direções”, que obedecem à formação dos objetos, à formação das posições subjetivas, à formação dos conceitos, e à formação das escolhas estratégicas, segundo Foucault, correspondem “aos quatro domínios em que se exerce a função enunciativa[38].

Pela ótica do método arqueológico, um determinado conjunto de enunciados que são produzidos em acordo com um sistema de regras de formação – que Foucault nomeia de “arquivo” – conforma uma formação discursiva.  Entre o enunciado e a formação discursiva, o método arqueológico prescreve quatro etapas: (1) é necessário que haja uma regularidade entre os objetos, as modalidades enunciativas dos sujeitos, os conceitos e as teorias e temas estratégicos, pois, na “arqueologia” de Foucault, a formação dos objetos está sujeita às regras do campo discursivo, dado que são constituídas a partir de critérios de emergência, de delimitação e especificação; (2) as modalidades enunciativas em que os sujeitos estão imersos representam as definições sobre o controle das zonas distintas do discurso, as quais, por sua vez, especificam o nível de autoridade da fala de determinado sujeito sobre determinado objeto; (3) tratados como elementos do discurso, os conceitos devem ser situados em um campo discursivo para tornar possível a análise de suas condições de emergência e de dispersão; (4) o conjunto das regras estratégicas das formulações teóricas regula os modos de utilização do discurso, visto que elas conformam os modos de articulação com outros conjuntos de regras de formação – por isso as regras das formulações teóricas estão hierarquizadas em relação ao domínio dos objetos, dos conceitos e das modalidades enunciativas[39].

Ao defender a utilização de sua arqueologia como recurso metodológico, Foucault explica que 

É preciso notar que as estratégias... não se enraízam, aquém do discurso, na profundidade muda de uma escolha ao mesmo tempo preliminar e fundamental. Todos esse grupamentos enunciativos que devemos descrever não são a expressão de uma visão de mundo que teria sido cunhada sob a forma de palavras, nem a tradução hipócrita de um interesse abrigado sob o pretexto de uma teoria (...). Estas [formulações teóricas], ao contrário, devem ser descritas como maneiras sistematicamente diferentes de tratar objetos do discurso (de delimita-los, reagrupá-los ou separá-los, encadeá-los ou fazê-los derivar uns dos outros), de dispor formas de enunciações (de escolhê-las, organizá-las, constituir séries, compô-las em grandes unidades retóricas), de manipular conceitos (de lhes das regras de utilização, fazê-los entrar em coerências regionais e constituir, assim, arquiteturas conceituais). Essas opções não são germes de discursos (onde estes seriam determinados com antecedência e prefigurados sob uma forma quase microscópica); são maneiras reguladas (e descritíveis como tais) de utilizar possibilidades de discursos.[40] 

A análise das práticas discursivas, de acordo com a perspectiva arqueológica de Foucault, busca definir os discursos enquanto práticas que obedecem a regras formadas dentro e fora da linguagem[41]. Consciente de que há um embate em torno do estatuto de verdade, do conjunto de regras através das quais se estabelece o veradadeiro e o falso, dessa forma, o que a arqueologia investiga é um domínio de saber dentro de um sistema lógico, lingüístico e psicológico que configura determinado regime de verdade.[42] 

Considerações Finais 

Em duas etapas, observamos como se situa o método arqueológico de Michel Foucault em sua trajetória filosófica, de acordo com o ponto de vista de Dreyfus e Rabinow, e, também, examinamos a compreensão foucaultiana de análise arqueológica dos discursos e das práticas discursivas.

Sobre a aplicabilidade do método arqueológico para a análise das práticas discursivas, é plausível dizer que se trata de um instrumento intelectual que não perdeu sua utilidade, especialmente quando direcionado ao estudo dos regimes de verdade caracterizados como de produções científicas, visto que a ciência se forma a partir de memórias discursivas prévias, de uma formação discursiva que aponta os sentidos possíveis e coíbe os demais sentidos.[43]

O possível incômodo causado pelo pensamento de Foucault ao situar historicamente as próprias ciências humanas, ao contrário ser um problema, pode ser entendido como um atestado da validade de seu método arqueológico, pois pode ser ferramenta de compreensão das construções científicas e dos sistemas de pensamento.


· Sérgio Campos Gonçalves graduou-se em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). É autor do livro “Collorgate: mídia, jornalismo e sociedade nos casos Watergate e Collor” (Rio de Janeiro: CBJE, 2008) e, atualmente, desenvolve pesquisa para obtenção do título de Mestre em História e Cultura Social na UNESP, no campus de Franca.

[1] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

[2]O termo discurso, em Foucault, tem valor diferente do que lhe atribuem teorias lingüísticas: discurso, no quadro teórico do pensamento do autor, faz referência ao conjunto de regras e práticas que constroem uma versão da realidade ao produzirem representações sobre certos objetos e conceitos e definirem aquilo que se pode dizer sobre aqueles objetos e conceitos, num momento histórico específico” (BALOCCO, Anna Elizabeth. Quando a ficção invade a prosa: práticas discursivas não-canônicas do discurso acadêmico. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 5, n. 2, p. 249-266, jan./jun. 2005, p. 253).

[3] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

[4] FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980.

[5] FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

[6] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Lisboa: Relógio D’água, 1997.

[7] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XV.

[8] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XV.

[9] Ibidem, p. XVI.

[10] Cf. THOMPSON, Kevin. Historicity and Transcendentality: Foucault, Cavaillès, and the Phenomenology of the Concept. History and Theory, v. 47, n. 1, p. 1-18, fev., Wesleyan University, 2008.

[11] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XIX-XXIV.

[12] Dreyfus e Rabinow (Op. cit., p. XIX) utilizam a palavra “comentário” para se referir a “a recuperação de significados e verdades oriundas de nossas práticas cotidianas e das de outra época ou cultura”.

[13] FOUCAULT, Michel. História da loucura da Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

[14]A mudança de foco da linguagem para o discurso, no pensamento do autor francês, é necessariamente acompanhada por uma mudança na concepção de sujeito: passa-se de uma visão do sujeito como um indivíduo centrado, dotado de consciência plena de seus atos e origem do seu dizer, para uma concepção de sujeito limitado pela “episteme” ou “regime de verdade” de sua época e de sua cultura” (BALOCCO, Anna Elizabeth. Quando a ficção invade a prosa: práticas discursivas não-canônicas do discurso acadêmico. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 5, n. 2, p. 249-266, jan./jun. 2005, p. 254).

[15] FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980, p. XI-XII.

[16] Ibid., p. XIII.

[17] Ibid., p. 225-226.

[18] Ibid. p. 229.

[19] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

[20] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XX. Cf. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 03-20.

[21] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Lisboa: Relógio D’água, 1997.

[22] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XXI.

[23] Ibid., loc. cit.

[24] BALOCCO, Anna Elizabeth. Quando a ficção invade a prosa: práticas discursivas não-canônicas do discurso acadêmico. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 5, n. 2, p. 249-266, jan./jun. 2005, p. 254.

[25]DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, passim.

[26] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Lisboa: Relógio D’água, 1997.

[27] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 56.

[28] Cf. DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 50-53.

Seria possível exemplificar que “a literatura” é um ato elocutório na medida em que possui a pretensão à criação de uma verdade que seria a formação de um discurso da autoridade literária. Ou, também, que “a história” é um ato elocutório pois contém a pretensão à formação de um discurso historiográfico que possui autoridade histórica.

[29] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 135.

[30] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 53.

[31] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 31.

[32] ARAÚJO, Inês Lacerda. Formação discursiva como conceito chave para a arquegenealogia de Foucault. Revista Aulas. Dossiê Foucault (orgs. Margareth Rago e Adilton Luís Martins). N. 3, dezembro 2006 / março 2007. ISSN 1981-1225.

[33] Ver FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Lisboa: Relógio D’água, 1997.

[34] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 136.

[35]Foucault aponta que o estabelecimento do sentido de verdade é fruto de um processo coercitivo e produtor de efeitos regulamentadores de poder. O sujeito se expressa na ilusão de controlar a origem de seu discurso, sem que se dê conta de que o determinante dos sentidos desse discurso é a história, que se manifesta através das diferentes formações discursivas nas quais se inscreve e das quais não pode se despojar. O próprio sujeito, os sentidos de seus discursos, o dizível e o não dizível são determinados pelas formações discursivas que operam através de memórias discursivas próprias às diversas posições desse sujeito, e mostram as relações de poder que se estabelecem para a determinação da verdade” (ADINOLFI, Valéria Trigueiro Santos. Discurso científico, poder e verdade. Revista Aulas. Dossiê Foucault (orgs. Margareth Rago e Adilton Luís Martins). N. 3, dezembro 2006 / março 2007, p. 03).

[36]  Fischer, Rosa Maria Bueno. Foucault and analysis of discourse on educational researches. Cadernos de Pesquisa, 2001, vol., n. 114, ISSN 0100-1574.

[37] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da hermenêutica) / Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 68.

[38] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 134.

[39] Ver OLIVEIRA, Cristiane. A vertigem da descontinuidade: sobre os usos da história na arqueologia de Michel Foucault. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 169-181, jan.- mar., 2008.

[40] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 76-77.

[41] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 159-160.

[42] Ver ADINOLFI, Valéria Trigueiro Santos. Discurso científico, poder e verdade. Revista Aulas. Dossiê Foucault (orgs. Margareth Rago e Adilton Luís Martins). N. 3, dezembro 2006 / março 2007. ISSN 1981-1225.

[43] Ibid.