Sobre o autor
*
Introdução
Este
texto representa um estudo panorâmico sobre a análise discursiva que Michel
Foucault prescreveu através da construção de seu método arqueológico. O objetivo
é refletir sobre a aplicabilidade da “arqueologia do discurso” como recurso
metodológico.
A
estratégia de trabalho consistiu em duas etapas: a primeira trata de situar a
análise arqueológica do discurso na “trajetória filosófica” de Michel
Foucault, que tem por referência o trabalho de Dreyfus e Rabinow (1995)[1];
a segunda observa o percurso metodológico-arqueológico pensado por Foucault para
a análise do discurso.[2]
Ainda
que esteja concentrado no livro “A Arqueologia do Saber”[3],
é fundamental situarmos o trabalho de Foucault sobre o método arqueológico em
perspectiva, de acordo com o desenvolvimento de sua obra. Algumas importantes
idéias que são pré-requisitos à compreensão do nosso objetivo estão contidas
notadamente nos seguintes textos: “O Nascimento da Clínica”[4],
“As Palavras e as Coisas”[5],
e “A Ordem do Discurso”[6].
“Arqueologia” em perspectiva
pós-facto
O livro
“Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da
hermenêutica”, escrito por H. Dreyfus e P. Rabinow - e com participação do
próprio Foucault, aponta um sentido
pós-facto
da obra foucaultiana. Conforme os autores observam, partindo da interpretação
kantiana, Foucault entende que o final do século XVIII representa um ponto de
inflexão para o conhecimento humano (ocidental), dado que, a partir de então, os
seres humanos passaram a ser interpretados como sujeitos e objetos do seu
próprio conhecimento, concomitantemente. Dreyfus e Rabinow explicam que
Kant
introduziu a idéia de que o homem é o único ser totalmente envolvido pela
natureza (seu corpo), pela sociedade (relações históricas, políticas e
econômicas) e pela língua (sua língua materna), e ao mesmo tempo, encontra uma
sólida base para todos estes envolvimentos em sua atividade organizadora e
doadora de sentido.[7]
Nessa
esteira, entre a década de 60 e o início dos anos 80 do século passado,
ocorreram dois tipos de reações metodológicas à fenomenologia, a abordagem
hermenêutica e a estruturalista. Ambas procuraram superar a divisão kantiana
entre sujeito e objeto - posto que sejam herdeiras dela.
Embora
o fato das duas perspectivas metodológicas abolirem a noção de um sujeito
transcendental doador de sentido, elas são diferentes. Além de procurar eliminar
tanto o sentido quando o próprio sujeito, a visada estruturalista esforça-se por
esquadrinhar “cientificamente” as leis objetivas que governariam todas as
atividades humanas; desse modo, investiga a partir da definição da decomposição
dos elementos básicos, regras ou leis que, em conjunto, seriam responsáveis
pelos empreendimentos humanos. Dreyfus e Rabinow observam que:
Existem
dois tipos de estruturalismo: estruturalismo atomista, onde [sic] os elementos
são completamente especificados, separadamente do papel que representam em algum
conjunto mais abrangente [...]; e o estruturalismo holista ou diacrônico, onde [sic]
o que é considerado como um elemento possível é definido separadamente do
sistema de elementos, mas o que conta como um elemento real é uma função
de todo o sistema de diferenças do qual o elemento dado é uma parte.[8]
Para
Dreyfus e Rabinow, o método arqueológico foucaultiano mais se assemelharia ao
estruturalismo holista – até porque Foucault explicitamente distingue seu método
do estruturalismo atomista. A fenomenologia transcendental, argumentam, “como
definida e praticada por Edmund Husserl, é diametralmente oposta ao
estruturalismo”, pois ela aceitaria a idéia de que o homem é, ao mesmo
tempo, totalmente objeto e sujeito.
Além
disso, a fenomenologia transcendental investiga, nas palavras de Dreyfus e
Rabinow, “a atividade doadora de sentido do ego transcendental, que dá
sentido a todos os objetos incluindo seu próprio corpo, sua própria
personalidade empírica, além da cultura e da história, que ‘estabelece’ como
condicionando seu ser”. Através de Heidegger e de Merleau-Ponty, Foucault
teria sido influenciado pela fenomenologia existencialista, que se trata do
contra-movimento da fenomenologia transcendental.[9]
Do
outro lado do estruturalismo estaria a abordagem hermenêutica. Apesar de abdicar
da tentativa fenomenológica de compreender o humano como sujeito doador de
sentido, a abordagem hermenêutica deseja manter o sentido, o qual seria
localizável nos textos literários e nas práticas sociais do homem. Ou seja,
nessa perspectiva, as ações humanas conteriam significados em estado latente, os
quais estariam ocultos aos agentes de suas práticas cotidianas. Essa verdade
profunda poderia ser descoberta através da leitura interpretativa, tal qual
prescreve o método hermenêutico.
[10]
Foucault não estaria interessado em recuperar essa verdade perdida pela
auto-interpretação do homem, pois ele não crê que o problema do equívoco da
auto-interpretação habitual e do auto-entendimento cotidiano tenha a raiz em uma
verdade profunda.
Ao
acompanhar as estratégias metodológicas que Foucault desenvolveu para estudar o
humano, Dreyfus e Rabinow defendem que ele constantemente buscou ir além das
alternativas que o estruturalismo e a hermenêutica ofereciam. Assim, ao
afastar-se da análise estruturalista que desconsiderava totalmente a noção de
sentido, Foucault substituiu-a “por um modelo formal de comportamento humano
que apresenta transformações, governadas por regras, de elementos sem
significado”[11].
Ele também “tentou evitar o projeto fenomenológico de ligar todo o sentido à
atividade de dar sentido de um sujeito autônomo e transcendental”, da mesma
forma que buscou desviar da “tentativa do comentário de ter o sentido
implícito das práticas sociais, assim como o desvelar feito pela hermenêutica de
um sentido diferente e mais profundo do qual os atores sociais têm uma vaga
consciência”.[12]
Em seus
primeiros trabalhos, como a “História da Loucura na Idade Clássica”[13]
e “O Nascimento da Clínica”, Foucault volta-se para o estudo analítico de
sistemas de instituições e práticas discursivos historicamente localizados[14].
Nessas duas obras, Foucault distingue os atos de fala da vida cotidiana das
práticas discursivas, e, especialmente, interessa-se pelos “atos de fala
sérios”, sobretudo do discurso das disciplinas que constituíram as ciências
humanas. Foucault ilustra essa idéia quando nota que há uma mudança de percepção
ligada à nova forma de construção do conhecimento:
O olho
torna-se o depositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma
verdade que ele só recebe à medida que lhe deu à luz; abrindo-se, abre a verdade
de uma primeira abertura: flexão que marca, a partir do mundo da clareza
clássica, a passagem do “Iluminismo” para o século XIX.
[15]
O olhar
não é mais redutor, mas fundador do indivíduo em sua qualidade irredutível. E,
assim, torna-se possível organizar em torno dele uma linguagem racional. O
objeto do discurso também pode ser um sujeito, sem que as figuras da
objetividade sejam por isso alteradas. Foi esta organização formal e
em profundidade, mais que o abandono das teorias e dos velhos sistemas, que
criou a possibilidade de uma experiência clínica: ela levantou a
velha proibição aristotélica; poder-se-á, finalmente, pronunciar sobre o
indivíduo um discurso de estrutura científica.
[16]
[…] são
as formas de visibilidade que mudaram; o novo espírito médico […] nada mais é do
que uma reorganização epistemológica da doença, em que os limites do visível e
do invisível seguem novo plano; o abismo abaixo do mal e que era o próprio mal
acaba de surgir na luz da linguagem […].
[17]
A
formação da medicina clínica é apenas uma das mais visíveis testemunhas destas
mudanças nas disposições fundamentais do saber [...].
[18]
Posteriormente, Foucault afirma que as ciências humanas podem ser observadas
como sistemas autônomos de discurso, e que as instituições sociais exercem
influência sobre as práticas discursivas[19].
Para isso, recomenda investigar os discursos das ciências humanas
arqueologicamente, ou seja, sem envolver-se no debate se aquilo que afirmam é ou
não verdade, ou se suas proposições são plausíveis. Ao invés disso, ele afirma
que é preferível tratar o que é dito pelas ciências humanas como um “discurso-objeto”.
Tratar-se, desse modo, de uma teoria sobre o discurso: “ortogonal a todas as
disciplinas, com seus conceitos aceitos, sujeitos legitimados, objetos
inquestionados e estratégias preferidas que produzem afirmativas justificadas de
verdade”[20].
Foucault observa que:
Essa
vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição
institucional tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando
de nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder de coerção.
Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante
séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também – em suma,
no discurso verdadeiro.
[21]
Há
problemas com o projeto da Arqueologia. Conforme argumentam Dreyfus e
Rabinow, “o poder causal atribuído às regras que governam os sistemas
discursivos é ininteligível e torna incompreensível o tipo de influência que as
instituições sociais têm”; esta influência sempre figurou entre as
preocupações centrais de Foucault. Além disso, “na medida em que ele
considera a arqueologia um fim em si mesmo, ele exclui a possibilidade de
apresentar suas análises críticas em relação às suas preocupações sociais”[22].
O método arqueológico, destarte, revelou-se insuficiente para dar conta da série
de problemas e questões que diziam respeito às preocupações de Foucault. Como
resultado, ele passou a pensar uma renovação de seus instrumentos intelectuais.
Depois
da Arqueologia, ele [Foucault] desvia bruscamente da tentativa de
desenvolver uma teoria do discurso, e usa a genealogia de Nietzsche como ponto
de partida para o desenvolvimento de um método que lhe permitiria tematizar a
relação entre verdade, teoria, e valores e as instituições e práticas sociais
nas quais eles emergem.
[23]
Entretanto, Foucault não rejeita o método arqueológico. Ele apenas afasta-o da
pretensão de elaborar uma teoria absoluta sobre as regras que governariam os
sistemas das práticas discursivas. Uma importante dimensão do pensamento de
Foucault é a reflexão sobre como a representação, o discurso e o conhecimento
estão envolvidos com práticas sociais e o poder, conforme especifica Balocco, ou
como estão ligados “à forma como determinadas pessoas têm acesso diferencial
a certos discursos ou têm mais autoridade para falar sobre certos assuntos, ou
para construir determinadas representações, do que outras”[24].
Com efeito, como instrumento metodológico, a arqueologia foucaultiana conserva
sua utilidade de isolar os discursos-objetos, além de ser importante recurso
para “distanciar e desfamiliarizar” os discursos sérios das ciências
humanas.
O
percurso das reflexões de Foucault não se encerra com a arqueologia das práticas
discursivas. Bem pelo contrário, ela é ponto de partida para outra parte
importante de sua obra: aquela que trata de questões referentes ao poder e à
auto-subjetivação. Avançar sobre esses tópicos, contudo, extrapolaria o objetivo
proposto nestas linhas.
No
entanto, vale observar sinteticamente que, para Dreyfus e Rabinow, há três
momentos distinguíveis na obra foucaultiana: na primeira fase seria possível
observar o predomínio da linguagem, na qual seria perceptível uma tentativa de
superação das disparidades entre estruturalismo e a hermenêutica; na segunda,
suas reflexões sobre o poder redundariam em sua contribuição de enfatizar o
corpo “como o lugar em que as minuciosas e localizadas práticas sociais estão
ligadas com as macroorganizações de poder”; por último, a temática da
consciência de sentido do sujeito em diferentes épocas (auto-subjetivação)
representa o ponto central das preocupações de Foucault.[25]
Para os
autores da exegese de Foucault, seu trabalho o situaria além do estruturalismo
e, notadamente, da hermenêutica. Pois, apesar de conservar “a técnica
estrutural de enfocar o discurso para se libertar de considerar os discursos e
as práticas desta sociedade como simplesmente expressando a maneira como as
coisas são”, entretanto, Foucault teria se distanciado do estruturalismo ao
abandonar o projeto metodológico da arqueologia e, principalmente, por situar o
projeto estruturalista historicamente – este representaria, para Foucault, uma “tecnologia
disciplinar”, visto que faria parte de um contexto em que são crescentes “as
práticas isoladoras ordenadoras e sistematizadoras”. Foucault entende que
a
disciplina é um Princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os
limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização
permanente das regras. Tem-se o hábito de ver na fecundidade de uma autor, na
multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, como que
recursos infinitos para a criação dos discursos. Pode ser, mas não deixam de ser
Princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu papel positivo
e multiplicador, se não se levar em consideração sua função restritiva e
coercitiva.[26]
Teoria
da prática discursiva
O
método de análise do processo das ciências do homem e sua teoria do discurso,
como observado, foram apresentados por Foucault em “A Arqueologia do Saber”.
A grande função desse método é tentar compreender as condições históricas e
sociais que possibilitaram a irrupção de acontecimentos discursivos.
Em suas
próprias palavras, Foucault manifesta que “gostaria de mostrar, por meio de
exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os
laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um
conjunto de regras, próprias da prática discursiva”[27].
Para isso, talvez buscando uma perspectiva entre os níveis da estrutura e o do
acontecimento, Foucault parte da análise das relações que se estabeleceram do
menor e mais simples grau para o mais amplo e complexo, isto é, ele projeta um
ciclo esquemático entre o enunciado (partícula mínima) e a formação discursiva
(complexo):
Sendo o
enunciado um ato elocutório regrado e com pretensão à verdade[28],
o discurso refere-se ao conjunto de enunciados que obedecem a regras comuns de
funcionamento; ou seja, discurso seria “um conjunto de enunciados, na medida
em que se apóiem na mesma formação discursiva”[29].
Dado
que, para Foucault, o discurso é uma dispersão de elementos não conectados a
priori, caberia à análise do discurso observar tal dispersão e buscar as
regras de formação que regeriam a formação dos discursos. Assim sendo,
configura-se uma formação discursiva se for possível identificar na dispersão
discursiva regularidades entre os objetos, os conceitos e as escolhas temáticas.
Em outras palavras, as regras determinantes para uma formação discursiva
apresentam-se como um sistema de relações entre objetos, tipos de enunciados,
conceitos e estratégias. Dessa maneira, todos esses elementos em conjunto
possibilitariam a passagem da dispersão para a regularidade.
O
objeto do arqueólogo é, portanto, o discurso. Mas não qualquer um. Dreyfus e
Rabinow explicam que Foucault está interessado nos atos discursivos que se
voltam para a constituição de um campo autônomo, visto que “tais atos
discursivos ganham sua autonomia depois de serem aprovados numa espécie de teste
institucional, como regras de argumento dialético, interrogatório inquisitório,
ou confirmação empírica”[30].
Logo, para Foucault:
A
análise do campo discursivo [...] trata-se de compreender o enunciado na
estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua
existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas
correlações com outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras
formas de enunciação exclui.
[31]
De
acordo com Araújo, em Foucault, “o sujeito do discurso não é a pessoa que
realiza um ato de fala [...], o sujeito é aquele que pode usar determinado ato
enunciativo por seu treinamento, pelo seu posto institucional ou competência
técnica”.[32]
Além
disso, há no discurso um suporte histórico, institucional, uma espécie de
materialidade que proíbe ou permite sua realização[33].
Daí Foucault definir seu conceito de prática discursiva como “um conjunto de
regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que
definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica,
geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa”[34].
Dessa forma, os atos de fala – elocutórios e enunciativos – inscrevem-se no
interior de formações discursivas e em função de determinados regimes de
verdade. Isto é, o discurso obedece a um conjunto de regras que são dadas
historicamente e que reafirmam verdades de um tempo, pois participam das
relações históricas de saber e poder.[35]
Ademais, em acordo com sua teoria do discurso, Foucault ensina que o pesquisador
não deve investigar o que supostamente estaria por trás dos documentos e dos
textos, tampouco deveria buscar resgatar aquilo que, diferente do que se tenha
dito, supostamente se queria dizer em outra época ou cultura; a recomendação de
Foucault é que o pesquisador (“arqueólogo”) descreva as condições de existência
do discurso, do enunciado ou do conjunto de enunciados de determinada época ou
cultura.[36]
Para a
análise das formações discursivas, Foucault observa que o arqueólogo deve, em
primeiro lugar, selecionar os atos discursivos sérios de um determinado período,
para, em segundo lugar, sistematizá-los e descrevê-los. No entanto, essa
metodologia apenas seria possível se instrumentalizada por alguns “utensílios
conceituais que o arqueólogo usará para catalogar esse novo domínio”[37].
Desse modo, Foucault introduz quatro categorias descritivas para a análise das
formações discursivas: os objetos, os sujeitos, os conceitos e as estratégias.
Em conjunto, e dentro do processo metodológico foucaultiano de análise dos
sistemas que instauram o enunciado como acontecimento (práticas discursivas), as
quatro categorias descritivas representam etapas que podem ser discriminadas no
processo entre o enunciado e a formação discursiva:
“As
quatro direções”, que obedecem à formação dos objetos, à formação das
posições subjetivas, à formação dos conceitos, e à formação das escolhas
estratégicas, segundo Foucault, correspondem “aos quatro domínios em que se
exerce a função enunciativa”[38].
Pela
ótica do método arqueológico, um determinado conjunto de enunciados que são
produzidos em acordo com um sistema de regras de formação – que Foucault nomeia
de “arquivo” – conforma uma formação discursiva. Entre o enunciado e a
formação discursiva, o método arqueológico prescreve quatro etapas: (1) é
necessário que haja uma regularidade entre os objetos, as modalidades
enunciativas dos sujeitos, os conceitos e as teorias e temas estratégicos, pois,
na “arqueologia” de Foucault, a formação dos objetos está sujeita às
regras do campo discursivo, dado que são constituídas a partir de critérios de
emergência, de delimitação e especificação; (2) as modalidades enunciativas em
que os sujeitos estão imersos representam as definições sobre o controle das
zonas distintas do discurso, as quais, por sua vez, especificam o nível de
autoridade da fala de determinado sujeito sobre determinado objeto; (3) tratados
como elementos do discurso, os conceitos devem ser situados em um campo
discursivo para tornar possível a análise de suas condições de emergência e de
dispersão; (4) o conjunto das regras estratégicas das formulações teóricas
regula os modos de utilização do discurso, visto que elas conformam os modos de
articulação com outros conjuntos de regras de formação – por isso as regras das
formulações teóricas estão hierarquizadas em relação ao domínio dos objetos, dos
conceitos e das modalidades enunciativas[39].
Ao
defender a utilização de sua arqueologia como recurso metodológico, Foucault
explica que
É
preciso notar que as estratégias... não se enraízam, aquém do discurso, na
profundidade muda de uma escolha ao mesmo tempo preliminar e fundamental. Todos
esse grupamentos enunciativos que devemos descrever não são a expressão de uma
visão de mundo que teria sido cunhada sob a forma de palavras, nem a tradução
hipócrita de um interesse abrigado sob o pretexto de uma teoria (...). Estas
[formulações teóricas], ao contrário, devem ser descritas como maneiras
sistematicamente diferentes de tratar objetos do discurso (de delimita-los,
reagrupá-los ou separá-los, encadeá-los ou fazê-los derivar uns dos outros), de
dispor formas de enunciações (de escolhê-las, organizá-las, constituir séries,
compô-las em grandes unidades retóricas), de manipular conceitos (de lhes das
regras de utilização, fazê-los entrar em coerências regionais e constituir,
assim, arquiteturas conceituais). Essas opções não são germes de discursos (onde
estes seriam determinados com antecedência e prefigurados sob uma forma quase
microscópica); são maneiras reguladas (e descritíveis como tais) de utilizar
possibilidades de discursos.[40]
A
análise das práticas discursivas, de acordo com a perspectiva arqueológica de
Foucault, busca definir os discursos enquanto práticas que obedecem a regras
formadas dentro e fora da linguagem[41].
Consciente de que há um embate em torno do estatuto de verdade, do conjunto de
regras através das quais se estabelece o veradadeiro e o falso, dessa forma, o
que a arqueologia investiga é um domínio de saber dentro de um sistema lógico,
lingüístico e psicológico que configura determinado regime de verdade.[42]
Considerações Finais
Em duas
etapas, observamos como se situa o método arqueológico de Michel Foucault em sua
trajetória filosófica, de acordo com o ponto de vista de Dreyfus e Rabinow, e,
também, examinamos a compreensão foucaultiana de análise arqueológica dos
discursos e das práticas discursivas.
Sobre a
aplicabilidade do método arqueológico para a análise das práticas discursivas, é
plausível dizer que se trata de um instrumento intelectual que não perdeu sua
utilidade, especialmente quando direcionado ao estudo dos regimes de verdade
caracterizados como de produções científicas, visto que a ciência se forma a
partir de memórias discursivas prévias, de uma formação discursiva que aponta os
sentidos possíveis e coíbe os demais sentidos.[43]
O
possível incômodo causado pelo pensamento de Foucault ao situar historicamente
as próprias ciências humanas, ao contrário ser um problema, pode ser entendido
como um atestado da validade de seu método arqueológico, pois pode ser
ferramenta de compreensão das construções científicas e dos sistemas de
pensamento.
·
Sérgio Campos Gonçalves graduou-se em História pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e em Comunicação
Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade de Ribeirão
Preto (UNAERP). É autor do livro “Collorgate: mídia, jornalismo e
sociedade nos casos Watergate e Collor” (Rio de Janeiro: CBJE, 2008)
e, atualmente, desenvolve pesquisa para obtenção do título de Mestre em
História e Cultura Social na UNESP, no campus de Franca.
[1]
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995.
[2]
“O termo discurso, em Foucault, tem valor diferente do que lhe
atribuem teorias lingüísticas: discurso, no quadro teórico do pensamento
do autor, faz referência ao conjunto de regras e práticas que constroem
uma versão da realidade ao produzirem representações sobre certos
objetos e conceitos e definirem aquilo que se pode dizer sobre aqueles
objetos e conceitos, num momento histórico específico” (BALOCCO,
Anna Elizabeth. Quando a ficção invade a prosa: práticas discursivas
não-canônicas do discurso acadêmico. Linguagem em (Dis)curso - LemD,
Tubarão, v. 5, n. 2, p. 249-266, jan./jun. 2005, p. 253).
[3]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986.
[4]
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1980.
[5]
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins
Fontes, 1985.
[6]
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Lisboa: Relógio D’água,
1997.
[7]
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XV.
[8]
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XV.
[10]
Cf. THOMPSON, Kevin. Historicity and
Transcendentality: Foucault, Cavaillès, and the Phenomenology of the
Concept. History and Theory, v. 47, n. 1, p. 1-18, fev., Wesleyan
University, 2008.
[11]
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XIX-XXIV.
[12]
Dreyfus e Rabinow (Op. cit., p. XIX) utilizam a palavra “comentário”
para se referir a “a recuperação de significados e verdades oriundas de
nossas práticas cotidianas e das de outra época ou cultura”.
[13]
FOUCAULT, Michel. História da loucura da Idade Clássica. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
[14]
“A mudança de foco da linguagem para o discurso, no pensamento do
autor francês, é necessariamente acompanhada por uma mudança na
concepção de sujeito: passa-se de uma visão do sujeito como um indivíduo
centrado, dotado de consciência plena de seus atos e origem do seu
dizer, para uma concepção de sujeito limitado pela “episteme” ou “regime
de verdade” de sua época e de sua cultura” (BALOCCO, Anna Elizabeth.
Quando a ficção invade a prosa: práticas discursivas não-canônicas do
discurso acadêmico. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v.
5, n. 2, p. 249-266, jan./jun. 2005, p. 254).
[15]
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1980, p. XI-XII.
[19]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986.
[20]
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XX. Cf. FOUCAULT, Michel. A
arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986,
p. 03-20.
[21]
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Lisboa: Relógio D’água,
1997.
[22]
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. XXI.
[24]
BALOCCO, Anna Elizabeth. Quando a ficção invade a prosa: práticas
discursivas não-canônicas do discurso acadêmico. Linguagem em
(Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 5, n. 2, p. 249-266, jan./jun. 2005,
p. 254.
[25]DREYFUS,
Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, passim.
[26]
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Lisboa: Relógio D’água,
1997.
[27]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986, p. 56.
[28]
Cf. DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 50-53.
Seria possível exemplificar que “a literatura” é um ato elocutório na
medida em que possui a pretensão à criação de uma verdade que seria a
formação de um discurso da autoridade literária. Ou, também, que “a
história” é um ato elocutório pois contém a pretensão à formação de um
discurso historiográfico que possui autoridade histórica.
[29]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986, p. 135.
[30]
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 53.
[31]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986, p. 31.
[32]
ARAÚJO, Inês Lacerda. Formação discursiva como conceito chave para a
arquegenealogia de Foucault. Revista Aulas. Dossiê Foucault
(orgs. Margareth Rago e Adilton Luís Martins). N. 3, dezembro 2006 /
março 2007. ISSN 1981-1225.
[33]
Ver FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Lisboa: Relógio
D’água, 1997.
[34]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986, p. 136.
[35]
“Foucault aponta que o estabelecimento do sentido de verdade é fruto
de um processo coercitivo e produtor de efeitos regulamentadores de
poder. O sujeito se expressa na ilusão de controlar a origem de seu
discurso, sem que se dê conta de que o determinante dos sentidos desse
discurso é a história, que se manifesta através das diferentes formações
discursivas nas quais se inscreve e das quais não pode se despojar. O
próprio sujeito, os sentidos de seus discursos, o dizível e o não
dizível são determinados pelas formações discursivas que operam através
de memórias discursivas próprias às diversas posições desse sujeito, e
mostram as relações de poder que se estabelecem para a determinação da
verdade” (ADINOLFI, Valéria Trigueiro Santos. Discurso científico,
poder e verdade. Revista Aulas. Dossiê Foucault (orgs. Margareth
Rago e Adilton Luís Martins).
N. 3, dezembro 2006 / março 2007, p. 03).
[36]
Fischer,
Rosa Maria Bueno.
Foucault and analysis of discourse on educational researches.
Cadernos de Pesquisa,
2001, vol., n. 114, ISSN 0100-1574.
[37]
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica (além do estruturalismo e da
hermenêutica)
/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto Carrero. – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 68.
[38]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986, p. 134.
[39]
Ver OLIVEIRA, Cristiane. A vertigem da descontinuidade: sobre os usos da
história na arqueologia de Michel Foucault. História, Ciência, Saúde
– Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 169-181, jan.- mar.,
2008.
[40]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986, p. 76-77.
[41]
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986, p. 159-160.
[42]
Ver ADINOLFI, Valéria Trigueiro Santos. Discurso científico, poder e
verdade. Revista Aulas. Dossiê Foucault (orgs. Margareth Rago e
Adilton Luís Martins). N. 3, dezembro 2006 / março 2007. ISSN 1981-1225.